Parceria entre a vinícola Manus e a Embrapa mapeia o terroir da Serra do Sudeste, no RS

Parceria entre a vinícola Manus e a Embrapa mapeia o terroir da Serra do Sudeste, no RS
Parceria entre a vinícola Manus e a Embrapa mapeia o terroir da Serra do Sudeste, no RS

A região da Borgonha, na França, é conhecida no mundo do vinho pelo cuidado em mapear cada pequena parcela do território. A partir de uma investigação minuciosa de variações de solo, clima e outras condições, especialistas no chamado “terroir” – a combinação de fatores que tornam um pedacinho de terra mais apropriado para o cultivo de uvas de ótima qualidade – definiram um mapa único de parcelas. Lá, há uma enorme diversidade de denominações que indicam a procedência dos melhores rótulos.

Esse conceito foi se espalhando pelo mundo e, agora, chega ao Brasil por meio de uma inédita parceria entre a Embrapa e a vinícola Manus, localizada na Serra do Sudeste, em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul.

A Manus é o projeto pessoal dos irmãos Diego e Gustavo Bertolini, responsáveis pela Vinhedos da Quinta, vinícola que produz uvas de grande qualidade para terceiros e fornece matéria-prima para grandes nomes da produção nacional desde o início do século. No ano 2000, os dois decidiram estruturar um projeto vitivinícola de boutique, focado na produção de pequenos lotes de vinhos especiais.

Por anos, a descoberta do potencial individual de cada pedaço do vinhedo foi feito de forma empírica. Os irmãos Bertolini percebiam que a Chardonnay plantada em uma determinada quadra tinha um perfil mais cítrico, enquanto a mesma uva em outra localidade dava origem a um vinho mais mineral.

Em 2020, teve início a análise das melhores parcelas, junto com a Embrapa Uva e Vinho, de forma sistemática, em um projeto inovador na viticultura brasileira. “Diego e Gustavo vieram com essa ideia de esquadrinhar as áreas para entender as potencialidades de cada parcela”, diz o agrônomo Celito Crivellaro Guerra, da Embrapa Uva e Vinho. “Normalmente, a Embrapa trabalha com associações de produtores, para a coletividade, mas esse caso foi uma exceção bem-vinda”, afirma.

O trabalho foi dividido em três grandes pilares. O primeiro foi a análise do solo. Composição, profundidade, umidade e composição química foram alguns dos fatores estudados. Uma estação climatológica foi instalada no vinhedo para captar dados sobre radiação solar, temperatura do orvalho, ventos e precipitação.

Em seguida, o foco do estudo passou para o manejo. Diferença de declive nos vinhedos, vigor e teor de água da planta ao longo do ciclo e até a cobertura permanente do solo com gramíneas e leguminosas foram analisadas. “O manejo gera uma cartografia”, diz Guerra. “Analisamos como cada mudança interfere na tipicidade da uva”.

Por fim, o projeto previa o acompanhamento da uva em cada etapa da maturação. A colheita era feita em três momentos diferentes, e vinificações experimentais, seguindo protocolos distintos, eram feitas para identificar o melhor potencial. O processo, claro, exigiu uma logística complexa. “Mas nos permitiu aplicar uma viticultura de precisão para revelar todo o potencial da região”, afirma Guerra.

A partir do cruzamento de todas essas informações, a Vinhedos da Quinta tem à disposição um mapeamento completo do potencial de seu próprio terroir. Esse pacote de dados será oferecido de forma pública a outros produtores da Serra do Sudeste, e o projeto poderá ser ampliado para além da propriedade dos irmãos Bertolini.

“As pessoas vão entender o que é uma boa metodologia de revelação do terroir. E poderemos fazer a mesma coisa em outras vinícolas da região”, diz Guerra.

Todo esse trabalho foi feito para fortalecer a produção da vinícola, que já conta com um portfólio extenso. Há, por exemplo, a linha Virgo, dedicada à expressão mais fresca das uvas chardonnay e pinot noir, além de um espumante rosé e de um blend com sete variedades diferentes.

Já a linha Clássica representa as melhores expressões do terroir, em que cada casta se desenvolve melhor.

A Manus também é uma das principais a explorar o potencial de outras uvas, além das variedades francesas mais comuns, como pinot noir, chardonnay, cabernet sauvignon e merlot.

Na linha chamada Liberum, mais autoral, há rótulos elaborados com as variedades brancas Alvarinho, importante na produção dos Vinhos Verdes do norte de Portugal, e a grega Assyrtiko. Na linha Clássica há vinhos elaborados com a italiana Nebbiolo, usada nos ícones de Barolo e Barbaresco, no Piemonte, e com a portuguesa Touriga Nacional.

Gustavo Bertolini, sócio da Manus

“As variedades francesas tiveram o mérito de representar um salto de qualidade na produção do vinho nacional”, diz Gustavo Bertolini. “Mas podemos expandir nosso léxico varietal. O mercado brasileiro tem essa aptidão de buscar novidades, e prefiro me destacar por isso”.

Outros testes vêm sendo feitos com uvas como a também italiana Teroldego, a Saperavi, natural da Geórgia, e a romena Feteasca Neagra.

A diferença é que o que antes era feito de modo empírico, na base da tentativa e erro, agora é feito com conhecimento. “A partir dos elementos que o terroir te dá, o fator humano adquire um papel crucial, qualitativo. A Borgonha já faz isso”, afirma Bertolini.

Segundo o produtor, a meta é incentivar outros produtores a fazer trabalhos semelhantes e, eventualmente, pleitear indicações de procedência (IP) e denominações de origem (DO) que comprovem a qualidade do vinho lá feito.

A Manus também vem trabalhando uma viticultura mais limpa. “Não usamos praticamente nada de herbicida nem adubos químicos”, diz Bertolini.

O manejo não é orgânico, mas vem sendo conduzido rumo a um trabalho mais cuidadoso de solo, com aplicação precisa de produtos como nitrogênio. O resultado é um vinhedo mais resiliente, capaz de suportar o clima desafiador da região.

As chuvas que afetaram o Estado de forma severa nas últimas semanas não causaram nenhum dano nos vinhedos da Manus, embora tenha afetado a logística da empresa. Preservados, eles podem indicar um caminho para a recuperação de muitos no entorno.