Ameaças reais à implementação da rastreabilidade bovina

Ameaças reais à implementação da rastreabilidade bovina
Ameaças reais à implementação da rastreabilidade bovina

Entre os temas mais discutidos atualmente na pecuária destaca-se a importância da rastreabilidade dos animais, pauta implementada como controle dos fornecedores indiretos. Aqui mesmo, nesse espaço, o tema é tratado de forma recorrente, com muita competência, nas colunas do Fernando Sampaio e da Teresa Cristina (Teka) Vendramini.

Em tese, monitorar a origem do gado seria imprescindível para controle do desmatamento ilegal, o que é discutível por várias razões. No entanto, isso não será foco neste texto.

A importância da rastreabilidade é inquestionável, mas precisa ser implementada de forma técnica, ordenada e  com benefícios mensuráveis. Experiência recente da pecuária comprova que o sucesso na adoção de novas práticas, técnicas ou gerenciais, depende da percepção de retornos econômicos por parte dos produtores.

Foi assim na integração com lavouras, na precocidade dos animais para abate, nas práticas mais eficientes de reprodução, no cruzamento industrial, etc. Não será diferente com a rastreabilidade. Se não houver percepção do benefício, o produtor não irá implementar.

Nos últimos anos, diversas iniciativas a campo de controle do fluxo de animais têm sido implementadas com sucesso, desde os programas mais bem elaborados de controle individual, até os que produtores garantem, por meio de comprovação, a compra de animais apenas de origem conhecida.

Nesse último caso, os fornecedores diretos se comprometem a conseguir documentos de garantia autodeclarada por parte dos produtores que fornecem para as suas fazendas (os indiretos). Os resultados têm sido animadores, mas escondem uma ameaça que irá se revelar nos próximos meses.

Em um movimento típico de ciclo dos preços pecuários, desde o início de 2022, as cotações dos animais para reposição – aqueles que serão comprados pelos fornecedores diretos – tem se desvalorizado em relação ao preço do boi gordo, comportamento que caracteriza os períodos de baixa.

O atual ciclo traz ainda um agravante ao movimento, causado pelo estímulo provocado com o aumento da demanda por animais terminados antes dos 30 meses, imposta a partir da exportação de carne para atender a China. Entre 2018 e 2021, os índices de natalidade do rebanho brasileiro aumentaram na ordem de dez pontos percentuais, incrementando ainda mais a oferta de animais para os anos seguintes.

O ágio da cotação da arroba do bezerro que, em 2021 chegou a passar de 50%, quando comparada à cotação média da arroba do boi gordo, ficou na média de 15% a 20% nos últimos seis meses. E já apresenta tendência de alta, comportamento também típico dos movimentos de ciclo pecuário.

E ao mesmo tempo que o mercado começa a sinalizar a proximidade de virada entre o período de baixa para o de alta do ciclo, as vendas de carne bovina permanecem aquecidas, registrando recordes nas exportações e na disponibilidade de produto para o consumidor interno.

No momento, os indicadores de margem dos frigoríficos situam-se nos patamares mais elevados dos últimos 15 anos, indicando que a demanda por animais para abate continuará aquecida, se nenhum fator negativo incidir sobre o cenário. E assim também permanecerá a demanda por animais de reposição.

Nesse cenário, a facilidade de originar animais de acordo com as exigências documentais não será a mesma. É bem provável que aconteça o que foi vivenciado anos atrás quando diversas fazendas se adaptaram para atender a demanda por rastreabilidade da União Europeia.

Ao perceberem que não receberiam preços diferenciados mesmo se atendessem a todos os protocolos, preferiram abandonar o programa ou enviar seus animais preferencialmente a frigoríficos que não exportavam.

Com o mercado mais favorável aos criadores de bezerros, é de se esperar que comportamento semelhante ocorra nas relações entre os fornecedores indiretos e diretos.

Para driblar essa tendência, frigoríficos e fornecedores diretos precisariam oferecer preços diferenciados para os que se adequarem. Essa diferenciação, de certa forma, já existe em muitos casos, mas as proporções necessárias são bem diferentes em períodos de baixa e de alta.

Com o mercado em alta, tanto os produtores como os frigoríficos empenhados em atender as exigências perdem competitividade diante daqueles que não estão na mesma página. Será um pouco mais difícil manter o fluxo de animais em conformidade quando o mercado de bezerros estiver sobrevalorizado diante do mercado do boi gordo.

Essa dificuldade precisa estar no horizonte de planejamento.

Profissionais representantes da indústria frigorífica, serviços e insumos vem se debruçando de forma técnica para encontrar uma alternativa viável de implementação da rastreabilidade, fundamentada na realidade comercial do campo e na estrutura fundiária do país. Estão chegando a propostas factíveis que possibilitariam o sucesso na implementação de um modelo eficiente e adaptado para o Brasil.

No entanto, apesar do embasamento, acabam sendo pressionados a acelerar o processo, adotando medidas não eficazes de controle por lotes, como é o caso dos modelos baseados em Cadastro Ambiental Rural (CAR) e Guias de Transporte Animal (GTA).

Defensores desses modelos apoiam-se em estudos que possibilitam analisar o fluxo de animais da origem até o frigorífico.  Mas se esquecem, propositadamente ou não, de que há uma enorme diferença entre diagnosticar uma origem ilegal, depois de ocorrida, e fazer o controle no momento da compra, evitando que os animais em não conformidade adentrem na fazenda.

Uma outra dificuldade que envolve os modelos de monitoramento via GTAs refere-se a negociações que possam ser celebradas entre o fornecedor indireto e um terceiro, envolvendo animais de origem inconforme.

Nesse caso, o fornecedor direto, mesmo garantindo que tenha comprado apenas animais dentro das exigências, pode acabar sendo punido por ilegalidades sobre a qual não tem, e não teve, nenhum controle ou sequer participação.

As propostas apresentadas por diversos grupos preveem protocolos para agir diante de algumas dessas situações, mas negligenciam o timing das relações comerciais. Alguns protocolos apresentados criam burocracias difíceis de serem administradas a campo. E, diante delas, a tendência é de que os fornecedores busquem formas de evitá-las ou burlá-las. Relembrando que o balanço entre oferta e demanda nos próximos meses vai favorecer os produtores que não queiram se adaptar.

Acompanhando os diversos estudos divulgados e os posicionamentos em mesas de discussão, fica perceptível que o setor produtivo está ansioso em apresentar soluções imediatas para problemas que demandam tempo para solucionar.

Profissionais técnicos, conscientes do tamanho do problema, estão cedendo diante da constante ameaça do sensacionalismo midiático daqueles que se apresentam como parceiros nas soluções. São parceiros desde que as soluções sejam implementadas de acordo com o que propõem. Para eles, não se trata de mesas de discussões, mas sim de validações.

Em um caso extremo, em uma das reuniões sobre o tema realizada meses atrás, um profissional teoricamente especializado no assunto afirmou que a ocorrência de leilões não consistia em um problema para o monitoramento de origem do gado, visto que tal prática era restrita a animais de elite, ou seja, reprodutores de alto valor agregado. Inadvertidamente confessou desconhecer a realidade do comércio de gado no Brasil, caracterizado pela realização de leilões comerciais em todas as regiões. Trata-se de inaptidão para participar de decisões sobre protocolos de monitoramento.

Entrevistando profissionais da área, diversos estudos sobre o tema, conduzidos por instituições ou empresas contratadas por ONGs, foram eficientes em identificar tais problemas aqui colocados.

No entanto, ao invés de se aprofundarem gerando estatísticas para melhorar as propostas de soluções, optaram por apenas mencioná-los como notas de rodapé.  Em suas conclusões, tais estudos defendem que a triangulação voluntária seja a principal ocorrência para burlar o monitoramento dos animais quando, na verdade, o maior desafio está na dificuldade em administrar o processo. Não compreenderam que consideram exceção o que é, na verdade, a regra.

Incluindo os diversos níveis de fornecedores indiretos, cada fornecedor de gado para abate se relaciona, em média, com 110 criadores e recriadores de bezerros.

Nas últimas duas edições do Rally da Pecuária, os produtores que compram animais de outros fornecedores disseram se relacionar, em média, com 10 a 11 pecuaristas. Incluindo os diversos níveis de fornecedores indiretos, cada fornecedor de gado para abate se relaciona, em média, com 110 criadores e recriadores de bezerros. E quanto maior for a escala de abate, maior será a dependência de fornecedores indiretos de diversos níveis, salvo raras exceções.

Será que, na hora da verdade, produtores e frigoríficos aceitarão rifar a escala para atender demandas que não podem ser atendidas dentro da realidade?  E mesmo que aceitem, o que irá acontecer com os animais que não forem comprados por eles? Alguém acredita que morrerão de velhice nas fazendas que não se adaptaram?

É possível criar e implementar um modelo eficiente de controle dos fornecedores indiretos no Brasil, através da rastreabilidade. Mas é fundamental que os objetivos sejam definidos e todos os envolvidos se comprometam com a solução. O que se tem hoje é o Estado brasileiro, oneroso e ineficiente, buscando transferir suas responsabilidades para a iniciativa privada.  Não tem cabimento que o Estado, incapaz de controlar o desmatamento ilegal com todo o aparato disponível, acredite ser possível controlá-lo a partir do comércio de gado.

Além de comprometimento, é necessária a coordenação de ações de todas as partes envolvidas. As políticas públicas precisam ser eficientes em fiscalizar e zelar pelo equilíbrio do perfil de abate de bovinos no Brasil. É preciso encarar o desafio da regularização fundiária.

As ONGs envolvidas precisam ser transparentes em relação aos seus objetivos. Se são firmes e confiantes em suas propostas, precisam se comprometer com os resultados. Da forma como está, caso haja insucesso na execução das propostas, apenas as indústrias e produtores arcarão com o prejuízo. E evidentemente, diante da pressão do mercado e dos investidores, responderão demitindo os líderes dos departamentos envolvidos que estão, nesse momento, sendo pressionados a aceitar soluções em prazos impraticáveis. Qual o comprometimento das ONGs e de seus funcionários diante do eventual fracasso dos modelos que defendem?

O Ministério Público e o sistema bancário precisam buscar alternativas que auxiliem no processo. Com propostas de projetos de lei ao Congresso e protocolos para lidar com operadores ilegais, é possível fazer mais do que simplesmente exigir que os frigoríficos façam cumprir a lei que nem o Estado é capaz de garantir.

Estancar o acesso a recursos por parte dos que não conseguem atender apenas concentra ainda mais o setor, impedindo que produtores bem-intencionados se adequem. É preciso criar e executar medidas jurídicas para que o setor financeiro congele o movimento bancário de quem opera na ilegalidade. O fornecedor indireto de um frigorífico é cliente direto do sistema bancário.

Enfim, é interessante que os temas relacionados à sustentabilidade estejam sendo conduzidos da mesma forma que o debate político. O que está valendo são as intenções anunciadas e não a eficácia das medidas propostas e adotadas. Não interessa se é exequível ou não, o que vale é o discurso.

Ou o setor defende com firmeza o que é possível executar em determinado cronograma, ou ficará à mercê da própria sorte. Depois não adianta reclamar quando aqueles – que agora se dizem parceiros nas soluções – se destacarem na imprensa acusando o setor de greenwashing.

Por Maurício Palma Nogueira, engenheiro agrônomo, diretor da Athenagro e coordenador do Rally da Pecuária