A cientista brasileira que cultiva tomates em Marte (por enquanto, sem sair da Terra)

A cientista brasileira que cultiva tomates em Marte (por enquanto, sem sair da Terra)
A cientista brasileira que cultiva tomates em Marte (por enquanto, sem sair da Terra)

Quem viu o personagem de Matt Damon, no filme Perdidos em Marte, tentando cultivar batatas no planeta vermelho para sobreviver, pode não imaginar, mas esse cenário não está tão distante e nem é tão fictício assim.

Graças a uma brasileira, cultivar alimentos fora da Terra pode se tornar realidade no futuro. Rebeca Gonçalves, primeira astrobióloga do país a trabalhar com agricultura espacial, tem se destacado no cenário científico por liderar, em um dos centros mais avançados em pesquisa agronômica do mundo, um estudo que abre caminho para a produção agrícola sustentável em futuras colônias de Marte – e com importantes implicações para o cultivo também em situações adversas aqui na Terra.

Com a ascensão de uma nova corrida espacial, que prevê viagens com longas permanências em naves ou mesmo em planetas distantes, essa será uma preocupação real. Afinal, os recursos durante as missões são limitados e transportá-los é extremamente caro.

“Nós temos que chegar em um sistema de agricultura que seja totalmente fechado, autossustentável, autossuficiente e biorregenerativo para o solo, para a gente conseguir ter as colônias totalmente independentes da Terra”, disse Rebeca ao AgFeed.

Nascida em Santo André, no ABC Paulista, ela sempre foi apaixonada por biologia e pelo Espaço. Com um tio astrônomo aprendeu sobre as estrelas e as constelações. “A primeira coisa que eu me lembro de decorar foi a ordem dos planetas. Então, eu cresci com esse fascínio pelo Espaço, que foi só crescendo dentro de mim”, contou.

Apesar disso, na faculdade optou por estudar biologia. Na época imaginava que para contribuir com a pesquisa espacial teria de ser astronauta, profissão que nunca almejou. “Hoje eu sei que, se você quiser fazer parte de um setor espacial, você pode ser administrador, RH, artista, designer, advogado. Você pode ser de tudo, inclusive astrobiólogo”.

Mas há alguns anos, após uma espécie de crise existencial em que se questionou sobre o futuro e objetivos que buscava, Rebeca resolveu retomar o interesse pelo Espaço. Durante uma pesquisa na internet descobriu a astrobiologia e decidiu mudar os rumos da carreira.

“Eu estava pesquisando na internet até que eu encontrei esse termo e a minha mente explodiu. Falei: Meu Deus, astrobiologia, junta as minhas duas paixões, o que que é isso? Tenho que ver!”.

Foi quando descobriu um mestrado na Universidade e Centro de Pesquisa de Wageningen, na Holanda. Como já estava morando na França na época, a mudança foi fácil.

Estudo pioneiro

Na universidade, Rebeca liderou um grupo de pesquisadores, que incluía os holandeses Dr. Wieger Wamelink, especialista em estudos marcianos, e Dr. Jochem Evers, especialista em sistemas agrícolas, e alcançou um marco notável na agricultura espacial.

Com um estudo pioneiro, mostrou que o cultivo consorciado pode aumentar significativamente o crescimento de culturas agrícolas em solo marciano e garantir a autossustentabilidade de futuras colônias em Marte.

O consórcio de culturas é um método ancestral de cultivo que tem sido usado desde a época dos Maias. A técnica envolve cultivar plantas com propriedades complementares que podem auxiliar umas às outras no crescimento e resultar em maior produção de alimentos e na otimização de recursos como água e nutrientes.

A pesquisa envolveu o cultivo de ervilhas, cenouras e tomates em dois modelos de produção (consórcio e monocultura) e em três tipos de solo (solo orgânico terrestre, regolito marciano e areia comum, que tem propriedades semelhantes aos solos degradados na Terra).

Regolito é o termo técnico para um solo que não tem matéria orgânica presente, exatamente como o encontrado em Marte. O regolito marciano, aliás, foi desenvolvido pela própria Agência Espacial Americana (NASA) para estudos e é uma réplica física e química quase perfeita do terreno encontrado no planeta vermelho.

A colheita dos tomates marcianos

Os resultados do estudo, publicados em maio na revista acadêmica Plos One, foram promissores e a astrobióloga acredita que, agora, vão pavimentar o caminho para o avanço das pesquisas na agricultura espacial.

“Como essa era uma pesquisa pioneira, foi a primeira de consorciação de culturas em regolito marciano no mundo inteiro,
a gente proveu aí a base de onde agora as próximas pesquisas vão poder pisar e continuar”.

Todas as três espécies de plantas cresceram bem no regolito marciano e produziram mais de meio quilo de produtos frescos com apenas uma adição mínima de nutrientes.

No entanto, o grande avanço da pesquisa veio pelo fato de que o tomate teve um desempenho notavelmente melhor quando cultivado com a técnica de consórcio em comparação com o método tradicional de monocultura.

“O tomate que foi plantado em consorciação deu o dobro de frutos, comparado ao que estava em monocultura. E não só deu o dobro de produtos, mas também tinha um aspecto mais saudável. Eles eram maiores, tinham um tronco mais grosso e amadureceram mais cedo”, destacou Rebeca.

Segundo ela, como o experimento deu certo para uma das três culturas, agora basta manipular o sistema para se alcançar resultados ainda melhores.

“A gente pode mudar a proporção das espécies, colocar dois tomates e uma ervilha, duas ervilhas e um tomate, mudar as espécies, por mais adubo, por menos adubo, ver em várias gerações seguidas o que acontece”.

A produção de alimentos frescos em Marte é extremamente importante para garantir a segurança alimentar e a independência dos futuros assentamentos humanos, pois alguns nutrientes só existem nessas fontes.

“Quanto mais independente as colônias forem, mais seguras elas serão, em termos de segurança alimentar e nutricional dos astronautas, o que é sempre uma prioridade de qualquer agência espacial”.

Benefícios para o agro no nosso planeta

A linha de pesquisa adotada por Rebeca não beneficia apenas a agricultura espacial. Os resultados já podem ser aplicados diretamente em prol da produção agrícola aqui na Terra.

O estudo também avaliou o cultivo consorciado em solo arenoso, que tem propriedades semelhantes aos solos degradados no nosso planeta. E os resultados foram ainda mais expressivos do que com o regolito marciano.

A consorciação neste tipo de terreno levou a um aumento significativo no rendimento para 2 das 3 espécies presentes, e deu um desempenho geral vantajoso em comparação com os seus correspondentes de monocultura.

Estes resultados contribuem para o progresso contínuo de estudos sobre a consorciação para combater questões globais. “Hoje, 40% das terras agrícolas do nosso planeta foram degradadas, seja por ação humana ou mudanças climáticas, o que afeta cerca de 1,5 bilhão de pessoas em todo o mundo”.

Só no Brasil, 28 milhões de hectares de pastagens com alto potencial para a agricultura estão degradados, segundo dados da Embrapa.

“Essa foi a razão, na verdade, para a gente usar areia. Foi para que o estudo avançasse e acrescentasse ainda mais às pesquisas que já estão acontecendo com consorciação de culturas para poder melhorar os solos degradados da Terra”, disse a astrobióloga.

Mas ela destaca que os próprios resultados com o regolito marciano já são de grande valia para o agro terrestre. “Só o do regolito marciano já é relevante, por conta de ter pouca estrutura química e biológica. É um solo totalmente infértil e não tem nada, nenhum elemento nutriente ou elemento biológico”, complementou.

Gerar benefício direto para a vida na Terra é quesito fundamental para qualquer pesquisa espacial, explicou ela. “A gente tem uma cultura dentro do setor espacial, uma ética, de que se a sua pesquisa não tem nenhum benefício para a Terra, então pivote a sua pesquisa para que tenha. E isso eu vi em primeira mão quando eu trabalhava na ESA, na Agência Espacial Europeia”.

Rumo à Lua

De volta ao Brasil a cerca de um ano, Rebeca já está engajada em uma nova missão. Ela faz parte do seleto grupo de 30 pesquisadores que compõe a Space Farming Brasil, uma rede de pesquisa, com o suporte da Agência Espacial Brasileira (AEB) e liderança da Embrapa.

Como um dos signatários dos Acordos Artemis, uma série de tratados pela exploração pacífica da Lua, de Marte e de outros destinos astronômicos, o Brasil se comprometeu a realizar estudos relacionados à agricultura espacial e a desenvolver pesquisas que garantam a segurança alimentar das futuras colônias lunares e marcianas.

“O foco dessa parceria do Space Farming é desenvolver uma agricultura lunar e eu estou envolvida com essa rede. Já entrei aí, já me descobriram. Então, deu certo”.

A cientista ainda não pode dar detalhes sobre os trabalhos do grupo, mas destacou que os estuados vão priorizar duas espécies: batata-doce e grão-de-bico. Ela, claro, entra para o time com toda expertise que adquiriu no tema.

A exploração espacial vive uma nova era. O Programa Artemis, capitaneado pela Nasa, quer levar o homem à Lua ainda nesta década e estabelecer fundações para a exploração científica de longo prazo no satélite. As missões estão programadas para 2025, 2026 e 2028.

Além disso, há grande expectativa em torno das primeiras missões tripuladas à Marte. “Nos próximos 20 anos, na minha visão, com certeza nós teremos uma colônia em Marte”, acredita Rebeca.

Portanto, para ela, a tendência é a pesquisa em agricultura espacial se fortalecer cada vez mais e ganhar ainda mais relevância dentro desse cenário. Para o Brasil é uma grande oportunidade de estar na vanguarda.

”Já que a gente é tão bom em agricultura, a gente já é o celeiro do mundo. Agora a gente quer ser o celeiro do espaço”, concluiu.