A chinesa nada convencional que prometeu compra US$ 500 milhões em café brasileiro

A chinesa nada convencional que prometeu compra US$ 500 milhões em café brasileiro
A chinesa nada convencional que prometeu compra US$ 500 milhões em café brasileiro

O anúncio está longe de ser corriqueiro: a assinatura de um protocolo de intenções de compra de US$ 500 milhões em café brasileiro por uma única empresa.

O comprador também não é qualquer um: a Luckin Coffee, rede chinesa de cafeterias, é um case estudado globalmente de arrojo, transações polêmicas e recuperação.

Em um evento realizado nesta quinta-feira, em Pequim, com a presença do vice-presidente da República, a companhia chinesa firmou um memorando de intenções para adquirir 120 mil sacas, em um movimento cujo valor corresponde a quase o dobro dos US$ 280 milhões registrados em exportação de café brasileiro para a China no ano passado, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC).

O negócio, quando definitivamente efetivado, colocará os grãos brasileiros nas mãos de um parceiro também incomum. A Luckin Coffee, fundada em 2017, emergiu rapidamente como uma força dominante no mercado chinês de café. Atualmente, possui cerca 18 mil lojas na China, por onde passam, mensalmente, cerca de 48 milhões de clientes.

São números impressionantes, que fizeram a companhia superar, este ano, a rede americana Starbucks no país asiático. A trajetória para atingi-los, entretanto, é tortuosa.

A Luckin foi criada por Jenny Qian, ex-executiva da UCAR Inc., startup chinesa de serviços de carona, que imaginou um modelo de negócios que usasse tecnologia para introduzir o consumo em massa de café na China, um país historicamente dominado pelo consumo de chá.

Ela recebeu financiamento inicial de Charles Lu, fundador da UCAR, que passou a ser seu sócio na empresa e abriu a primeira loja em Pequim em outubro de 2017.

Depois de um período de testes, com nove lojas em 2017, no ano seguinte iniciou um processo de expansão alucinado.
De janeiro de 2018 a março de 2019, Qian e sua equipe abriram uma média de 5,2 lojas por dia, acumulando 16,9 milhões de clientes e 111 milhões de xícaras de café servidas.

Nesse processo, a companhia investiu US$ 500 milhões, dinheiro usado principalmente para financiar inaugurações e despesas de marketing. O dinheiro foi obtido em três rodadas de captação, que atraíram investidores do calibre da gestora Blackrock e do GIC, fundo soberano de Singapura.

Apenas um ano e meio depois da abertura da primeira loja, a Luckin estreava no pregão da Nasdaq, em Nova York, já com status de unicórnio (avaliação superior a US$ 1 bilhão).

Uma parte importante do sucesso foi atribuída ao modelo inovador de negócios, com uso intensivo de tecnologia, que a diferenciava de cafeterias tradicionais, inclusive a Starbucks.

Nas lojas, todos os pedidos devem ser feitos através do app da empresa. Os dados inseridos no aplicativo permitem à empressa entender hábitos de consumo e oferecer descontos agressivos, que tornam seus produtos mais acessíveis que os similares da concorrência.

O problema, descoberto menos de um ano do IPO, é que outra parte do sucesso não era real, mas forjada através de fraudes contábeis que inflaram em cerca de 40% os resultados da Luckin Coffee.

Investigada na China e nos Estados Unidos, a empresa acabou por admitir que havia inflado seus lucros. Foi multada em US$ 180 milhões e a excluída da listagem da Nasda, em um episódio que abalou a confiança dos investidores e colocou a sobrevivência da Luckin em risco.

O sabor da retomada

Abalada pelo golpe, a Luckin Coffee passou a ser estudada como um caso de fraude financeira, merecendo inclusive e um paper a respeito do escândalo na prestigiada Wharton School, na Universidade de Pensilvânia (EUA).

Os fundadores Qian e Lu, responsabilizados pelo escândalo, foram afastados da empresa e a gestão entregue a Guo Jinyi, executivo que já atuava na companhia.

Em janeiro de 2022, a dupla se viu definitivamente fora, com a tomada do controle pela Centurium Capital, firma de investimentos chinesa fundada por David Li, ex-chefe para a Ásia da empresa global de private equity Warburg Pincus e ex-banqueiro de investimentos do Goldman Sachs e do Morgan Stanley.

A Centurium esteve entre os primeiros investidores da Luckin Coffee e sentiu na pele os efeitos da fraude. Quando ela foi denunciada, estava em pleno processo de captação de US$ 2 bilhões para um novo fundo, que teve de ser abortado.

Mas Li enxergou potencial no negócio e investiu em sua recuperação. Manteve Jinyi no comando e implantou medidas rigorosas de controle, para evitar novas fraudes.

Com a nova gestão, a ordem foi voltar a acelerar, mantendo o modelo tecnológico e a política de descontos. Além disso, a Luckin apostou em parcerias com outras marcas populares na China, como a fabricante de licores Moutai, para criar bebidas únicas que combinam café e álcool e, assim, conquistar o paladar dos jovens chineses.

O resultado veio em ritmo ainda mais rápido. Ao final de 2022, a rede já tinha 8,2 mil endereços . Um ano depois, em dezembro de 2023, eram mais de 16 mil, o que significa a abertura de 22 pontos de venda por dia.

Essa expansão rápida foi facilitada por um modelo de negócios enxuto que prioriza pontos de venda para retirada e entrega, em vez de grandes espaços de café tradicionais.

Com isso, a Luckin superou a Starbucks em vendas anuais na China pela primeira vez, com uma receita de cerca de US$ 3,5 bilhões, refletindo um crescimento anual de 87%.

Embora aparentemente mais fundamentada, a nova onda de crescimento ainda enfrenta o ceticismo de muitos analistas sobre a sustentabilidade dos negócios, especialmente considerando a dependência de descontos e promoções para atrair clientes.

Convencê-los do contrário será crucial para o futuro da companhia, que já estuda um novo pedido de listagem na Nasdaq. Hoje, a Luckin Coffee negocia ações, mas no próprio balcão eletrônico da cafeteria. Afinal, nada na empresa é convencional.